“‘Continuar assim’ é a catástrofe”. Sobre a actualidade de Walter Benjamin

O artigo retoma a visão de Benjamin do progresso como catástrofe e relaciona-a com a crise do capitalismo que se agrava nas crises actuais. Para travar a catástrofe do “continuar assim”, é preciso reconhecer a crise como uma crise que já não permite alternativas no quadro da imanência capitalista. Isto torna ainda mais actual a insistência de Benjamin na interrupção. Que tem de ser entendida como uma ruptura com a forma de socialização capitalista.

A frase de Benjamin “‘Continuar assim’ é a catástrofe”1 torna-se cada vez mais actual face à crise do capitalismo que se manifesta nas chamadas crises múltiplas. Ela esclarece o carácter explosivo desta crise e o perigo das catástrofes que a acompanham. Com os perigos iminentes do fascismo e da guerra, o pensamento de Benjamin centra-se na questão da história. No centro desta está a questão da relação entre o passado e o presente. Eles estão ligados através do „núcleo temporal, que está simultaneamente no reconhecido e no reconhecível“.2

Benjamin distingue-se assim de um conceito burguês de verdade que enfatiza a intemporalidade da verdade. Pelo contrário, ele insiste no “núcleo temporal” que, na constelação do passado e do presente, torna a história legível no “tempo do agora” perante o perigo iminente. Ela torna-se legível a partir das suas catástrofes. No “continuar assim” ela rola sobre ruínas, esperanças não realizadas, possibilidades não concretizadas, em suma: sobre as suas vítimas. Estas são relegadas ao esquecimento, de modo que „também os mortos… não estarão em segurança se o inimigo vencer“.3

  1. A luta de Benjamin pelo tempo e pela história como luta contra o mito do retorno do mesmo no capitalismo

Benjamin caracteriza o tempo em que passado e presente entram numa constelação como “tempo do agora”.4 Nele lampeja uma imagem do passado. „Assemelha-se às imagens do próprio passado, que aparecem às pessoas no momento de perigo“.5 A luta contra os perigos que surgem e podem ser lidos no presente é uma luta pelo tempo e pela história e, como tal, contra o mito. Este não é determinado pelo tempo da história, mas pelo tempo que corre no retorno do mesmo. No mito trata-se do curso da natureza, da harmonia com a natureza e com o seu fluxo uniforme de devir, desaparecer e devir de novo – não integrado em constelações histórico-temporais, mas na eternidade do cosmos e das constelações das estrelas. No mito, o tempo torna-se vazio, uniforme e homogéneo.

Lida em ligação com as ideias críticas da economia política e do fetichismo, a luta de Benjamin pelo tempo e pela história e contra o mito ganha contornos claros como luta contra o capitalismo. Por um lado, no capitalismo a história é naturalizada através da concorrência. Nele os fortes são seleccionados de entre os fracos e, no agravamento da crise, cada vez mais os valorizáveis de entre os „supérfluos“. O que Darwin pensava ter reconhecido como lei de selecção da natureza torna-se lei de selecção da história capitalista, como „biologização da sociedade mundial“.6

Em segundo lugar, como escreve Marx na sua análise do carácter fetichista da mercadoria e do seu segredo, o carácter social do trabalho e a objectividade dos seus produtos aparecem „como propriedades naturais sociais dessas coisas“.7 O contexto social da produção de mercadorias aparece como um contexto natural, a produção de mercadorias como „natural“. Ela gira em torno do sempre igual: o fim-em-si da multiplicação do capital.

No mito da produção de mercadorias, o tempo torna-se um tempo homogeneamente fluido e vazio; pois o tempo concreto do trabalho é subsumido ao tempo abstracto do valor.8 Está integrado no fluxo vazio em termos qualitativos e portanto de conteúdo da auto-valorização do capital como fim-em-si abstracto e vazio. Isto anda de mãos dadas com uma espiral de aceleração em que não há descanso – tal como Benjamin a descreveu ao nível do fenómeno da permanência do culto capitalista sem interrupção por dias de semana.9 Por detrás disto, a força motriz da inquietação é a tensão para aumentar o nível de produtividade sob os constrangimentos da concorrência. Isto deve-se à lei do valor. Só se o valor “ultrapassar constantemente os seus limites quantitativos”10 é que se pode manter como valor.

„O tempo do capital é marcado pelo paradoxo de uma circularidade orientada para o futuro. Mas esse futuro não é outra coisa senão o futuro dos próximos circuitos de acumulação“.11 Portanto o vazio do processo de acumulação em termos de conteúdo é banido para o vazio homogéneo do tempo, que flui como retorno do mesmo – sem objectivo nem perspectiva de sair do circuito do feitiço do sempre igual.

  1. Limites do “retorno do mesmo” e o vazio final do capitalismo

Mas o „retorno do mesmo“ não pode continuar indefinidamente. Depara-se com um limite lógico, que Marx descreveu como a „contradição em processo“12 do capital. A produção realizada no quadro da concorrência obriga a que o trabalho, fonte do valor e da mais-valia, seja substituído por tecnologia. Assim o capital destrói os seus próprios fundamentos. Com a revolução microeletrónica, a diminuição da substância do trabalho já não pode ser compensada através da expansão da produção, da redução dos custos, do barateamento das mercadorias e da expansão dos mercados etc. Assim o limite lógico também se depara historicamente com um limite que já não pode ser ultrapassado no quadro do capitalismo. O capitalismo cada vez menos se pode reproduzir. Isto aplica-se tanto à produção de valor e de mais-valia conotada como masculina como à reprodução dela dissociada conotada como feminina, ou seja, às actividades de cuidados, de assistência, de atenção emocional etc.

Ora Benjamin não tinha incluído o „local oculto da produção“13 na sua crítica do capitalismo. No entanto, é possível extrair da sua crítica algumas reflexões centradas em fenómenos que são importantes, tendo em vista o confronto com a crise do capitalismo que vivemos actualmente:

  1. Benjamin tinha em mente o limite do capitalismo ao nível da culpabilização. (a) Ele tinha caracterizado o culto capitalista como um „culto não de remissão, mas culpabilizador“,14 ou seja, como um culto sem saída salvadora. Nos ciclos de culpabilização, „o próprio Deus … é para ser incluído“.15 Deus não está simplesmente morto, mas „a sua transcendência caiu“ e Deus está assim „integrado no destino humano“ (ibid). Ele não se opõe às condições – transcendendo-as. Pelo contrário, torna-se a expressão da sua fetichização imanente, da „metafísica real“ (Robert Kurz) das relações capitalistas.
  2. Segundo Benjamin, o Deus oculto no culto capitalista torna-se reconhecível no zénite da culpabilização.16 Aqui se torna claro hoje que a acumulação aparente de capital nos mercados financeiros já não pode estar relacionada com a acumulação real, pelo que as bolhas se formam e rebentam repetidamente. O fluxo de um tempo homogéneo e vazio que Benjamin tinha associado ao progresso é reconhecível na crise agravada da „metafísica real“ capitalista como vazio associado à multiplicação do capital como fim-em-si abstracto. É vazio de conteúdo em dois sentidos. Por um lado, não está orientado para as qualidades, isto é, para o conteúdo, mas para a quantidade, isto é, abstractamente, para a multiplicação. Os objectos do mundo não são reconhecidos na sua própria qualidade, mas apenas como material para a valorização do capital. Em segundo lugar, com a crise da valorização que já não pode ser ultrapassada na imanência, o fim-em-si abstracto e irracional, o aumento do capital/dinheiro por amor de si mesmo corre para o vazio. Robert Kurz vê o seu potencial de aniquilação na impossibilidade de resolver a „contradição entre o vazio metafísico e a ‚obrigatoriedade de representação‘ do valor no mundo sensível“ … „Tal dá origem a um potencial destrutivo duplo: um ‘comum’, por assim dizer quotidiano, que sempre resulta do processo de reprodução do capital, e outro por assim dizer final, quando o ‘processo de exteriorização’ esbarra nos limites absolutos“.17
  3. A naturalização da história, que Benjamin via na seleção dos fortes de entre os fracos, assume traços aniquiladores à medida que a crise avança. Ela barbariza-se numa social-darwinista luta pela vida, que cada vez menos pode ser domada por regulamentos políticos. Este fenómeno manifesta-se nas chamadas crises múltiplas, como o colapso dos Estados, as guerras e as guerras civis, a destruição dos meios de subsistência, a migração e a fuga, a escalada da violência na repressão estatal e as lutas bárbaras pela sobrevivência. A luta é até à morte.

III. O actual momento de perigo: aniquilação do mundo e auto-aniquilação

Um „momento de perigo“ actual é provavelmente a guerra na Ucrânia.18 Nela lampejam as guerras de ordenamento mundial que são travadas principalmente em regiões onde os Estados estão a entrar em colapso. Nesta guerra torna-se claro que as chamadas grandes potências, com armas nucleares de aniquilação, também estão envolvidas nos processos de desintegração capitalista. Estão a lutar pela sua auto-afirmação nos processos de decadência. Também esta luta é inútil porque não há perspectivas de um novo regime de acumulação que possa servir de base a uma nova „ordem mundial“ hegemónica.19

Ao mesmo tempo os indivíduos isolados, sem apoio nem orientação, são levados a uma luta concorrencial pela auto-afirmação. Sob a pressão de uma auto-optimização permanente e infindável, trata-se de uma auto-submissão a ser alcançada sob a própria responsabilidade. Aqui a „auto-referencialidade da vazia forma metafísica“20 não permanece exterior aos sujeitos. Pelo contrário, estes são forçados a processar nesta forma os processos de crise a que estão expostos. Estas lutas também são tanto mais inúteis quanto mais o trabalho se desintegra como base da capacidade de acção individual e da autoconsciência autónoma.

Como última promessa de grandeza auto-eficaz está à espreita a disposição de auto-aniquilação e de aniquilação do mundo. Ela oferece-se como possibilidade de mostrar grandeza e demonstrar poder na aniquilação. Também a nível social o amoque está ao alcance. Robert Kurz deu a entender isso mesmo quando escreveu:

„O conceito de amoque democrático … bem pode ser levado à letra, no plano da acção militar. … Quanto mais a situação mundial se tornar insustentável e perigosa, mais o aspecto militar toma a dianteira e menor se torna o constrangimento em recorrer à violência de alta tecnologia em grande escala, sem sequer fazer grandes perguntas“.21

O „mundo desobediente“ (ibid.) e o „carácter elusivo dos problemas“ (ibid.) podem mobilizar uma „difusa fúria de aniquilação“ (ibid.).

  1. A questão do que deve ser salvo

No „momento de perigo“ que Benjamin reconhece no fascismo e na guerra iminentes, torna-se premente a questão do que poderia salvar do fluxo catastrófico do tempo vazio e homogéneo no continuum do progresso capitalista. Para Benjamin, a possibilidade de salvação depende da possibilidade de interromper o fluxo vazio e homogéneo do tempo e rebentar o „continuum da história“.22 Isto anda de mãos dadas com a recusa de esquecer e desconsiderar aquilo sobre que rolou o tempo vazio, nomeadamente os „nomes das gerações dos vencidos“.23 A “imagem dialéctica” que surge no momento do perigo visa uma “cesura no movimento do pensamento“24 , uma ’dialéctica paralisada” (ibid.). Ela permite aos „dialécticos da história“ „encarar“ a constelação de perigos, „seguir o seu desenvolvimento no pensamento“ e „evitá-los“ „a qualquer momento rapidamente“.25 A imagem dialéctica não prepara o caminho para uma transição suave, uma transformação suave em algo novo, mas descarrega-se num „calço“26 que se torna uma interrupção do „sempre igual“ no decurso da catástrofe.

No actual „momento de perigo“ torna-se legível a tendência para a aniquilação do mundo e a auto-aniquilação. O Deus ou fetiche escondido no decurso do capitalismo torna-se reconhecível no zénite da crise. Seria necessário romper com ele, ou seja, com as categorias que constituem o capitalismo: com o valor e a dissociação ao nível mais abstracto, bem como com a sua mediação no dinheiro enquanto expressão mais abstracta do vazio do processo capitalista de valorização do capital, com a sua incorporação nas polaridades do mercado e do Estado, da economia e da política, com o sujeito e com o iluminismo… Isto implica uma objecção às tendências sociais que vêem uma saída para a crise do capitalismo na alimentação da luta social-darwinista pela existência, incluindo a selecção de vencedores e vencidos. Esta luta já não pode “dar em nada” e, portanto, só pode dar na aniquilação.

Herbert Böttcher

  1. Walter Benjamin, Das Passagen-Werk. Gesammelte Schriften. V/1. Frankfurt a. M. 2015, p. 592. Trad. port.: Passagens, São Paulo, 2006.
  2. Walter Benjamin, Abhandlungen. Gesammelte Schriften.Bd. I/3 [Ensaios, Obras completas, Liv I, 3]. Frankfurt a. M. 2015, p. 578.
  3. Walter Benjamin, Über den Begriff der Geschichte.In: Abhandlungen. Gesammelte Schriften.Bd. I/2. Frankfurt a. M. 2015, p. 691–704; 695.Trad. port.: Sobre o conceito de história, online: http://guy-debord.blogspot.com/2009/06/water-benjamin.html
  4. Ibidem, p. 701.
  5. Benjamin, Abhandlungen, p. 1243.
  6. Ver Robert Kurz, Schwarzbuch Kapitalismus. Ein Abgesang auf die Marktwirtschaft.Frankfurt a. M. 2009, p. 293–349. Trad. port.: O livro negro do capitalismo, online: http://www.obeco-online.org/o_livro_negro_do_capitalismo_robert_kurz.pdf, p. 202ss.
  7. Karl Marx, Das Kapital. Kritik der politischen Ökonomie. Erster Band. Marx-Engels-Werke.Bd. 23. Berlin 1984, p. 86. Trad. port.: O Capital. Crítica da economia política, Livro I, tomo 1, Nova Cultural São Paulo, 1996, p. 187.
  8. Ver José Antonio Zamora, „Schuld – Schicksal – Mythos [Culpa – destino – mito]“.In: Kapitalismus. Kult einer tödlichen Verschuldung [Capitalismo. Culto de uma culpabilização mortal], hg. v. Kuno Füssel / Michael Ramminger. Münster 2022, p. 255–275; 266.
  9. Ver Walter Benjamin, „Kapitalismus als Religion“. In: Fragmente. Autobiographische Schriften. Gesammelte Schriften.Bd. VI, Frankfurt a. M. 1991, p. 100–103; 100. Trad. port.: Capitalismo como religião, online: http://www.ciencialit.letras.ufrj.br/garrafa/garrafa23/janderdemelo_capitalismocomo.pdf
  10. Karl Marx, Grundrisse der Kritik der politischen Ökonomie. Marx-Engels-Werke.Bd. 42. Berlin1984, p. 196. Trad. port.: Grundrisse, Boitempo, São Paulo, 2011, p. 332.
  11. José Antonio Zamora, „Gedanken zur Gottes- und Zeitfrage“ [Reflexões sobre a questão de Deus e do tempo], in: Philipp Geitzhaus und Michael Ramminger (Hg.), Gott in Zeit. Zur Kritik der postpolitischen Theologie [Deus no tempo. Para a crítica da teologia pós-política]. Münster 2018, p. 211–216; 215.
  12. Marx, Kapital, p. 601.
  13. Marx, Grundrisse, p. 189 [1996, 293].
  14. Benjamin, „Kapitalismus als Religion“, p. 100.
  15. Ibidem, p. 101.
  16. Ver Ibidem
  17. Robert Kurz, Weltordnungskrieg. Das Ende der Souveränität und die Wandlungen des Imperiums im Zeitalter der Globalisierung.Springe 2021, p. 69s. Trad. port.: A guerra de ordenamento mundial. O fim da soberania e as metamorfoses do imperialismo na era da globalização, online: http://www.obeco-online.org/a_guerra_de_ordenamento_mundial_robert_kurz.pdf, p. 47.
  18. Benjamin, Abhandlungen, p. 1243.
  19. Ver Tomasz Konicz, „China. Mehrfachkrise statt Hegemonie. Wieso die staatskapitalistische Volksrepublik nicht in der Lage sein wird, die USA als Hegemonialmacht zu beerben“. In: Netz-Telegramm. Informationen des Ökumenischen Netzes Rhein Mosel Saar, Oktober 2022, p. 1–7. Trad. port.: China: Múltiplas crises em vez de hegemonia. Por que a República Popular capitalista-estatal não herdará o poder hegemônico dos EUA, online: http://www.obeco-online.org/tomasz_konicz32.htm
  20. Kurz, Weltordnungskrieg, p. 69 [47]).
  21. Ibidem, p. 429 [290].
  22. Benjamin, Über den Begriff der Geschichte, p. 701.
  23. Ibidem, p. 700.
  24. Ibidem, p. 695.
  25. Benjamin, Passagen-Werk, p. 595.
  26. Ibidem, p. 703.

(a) O termo alemão aqui usado, Verschuldung, pode significar tanto «culpabilização» como «endividamento» (Nt. Trad.)

Original „Dass es ‚so weiter‘ geht, ist die Katastrophe“. Antes publicado em Narthex 8, 2023/2024 harp.tf. Tradução de Boaventura Antunes